À moda de Charlie Kaufman
Há quanto tempo não comia? Quatro, cinco horas? Sentia-se enjoado, mas se lembrou de comida ao passar em frente a uma dessas lojas de sucos. Tinha inveja daquelas pessoas capazes de devorar com volúpia sanduíches de mil camadas, baicon, maionese, tudo — e ainda por cima, coca-cola, em plena loja de sucos. Mas não tinha fome. Era só um sentimento recorrente: inveja de gente saudável. Saudável no sentido pleno, com saúde para enfrentar toda aquela comida sem passar mal. Desde sempre se apercebera disso. A saúde ou se tem ou não se ganha. Ele não tinha e se sentia enjoado.
Não era o enjôo de sempre, aquele desconforto contínuo, aquele sem-jeito com tudo. Ou era isso misturado. Mas havia um ingrediente novo: tinha resolvido pedir demissão.
(Passara a madrugada em claro. À noite, antes de dormir, um banho morno, um presságio. O barulho da água, o sabonete, a pele e um desejo de descanso definitivo. Lembrou-se do dia, da semana, de sempre e teve uma sensação ruim. Mergulhou a cabeça sob a água e se esqueceu de tudo. Uma camisa limpa, um lençol recém-lavado, a penumbra, o sono.
De repente, acordou sobressaltado. O coração palpitava. Deve ter sido um sonho, um pesadelo, pensou. Levantou-se, foi até a cozinha. Bebeu de um gole um copo d’água, tão sofregamente, que acabou se molhando. Com as luzes ainda apagadas, foi ao banheiro. Lavou o rosto e acendeu a luz à procura da toalha. Olhou-se no espelho e quase não se reconheceu. Olheiras profundas, barba mal feita. Nem parecia ter saído do banho há tão pouco tempo. Voltou à cama, mas não conseguiu dormir.)
Resolvera pedir demissão. E caminhava para o trabalho. O copo de café da manhã — que ele preferia às xíxaras convencionais —, a última fatia de pão e mais nada. Já era uma da tarde e ele estava atrasado, tinha resolvido ir a pé. Sentia-se enjoado, mas achou boa idéia parar por um suco. Assim adiava um pouco o encontro decisivo.
A meio quarteirão, quase diante da loja de sucos, uma vitrine o reteve. Nela, um manequim nu, à espera das roupas da nova coleção que lhe colocaria o funcionário da loja. Ele olhou fixamente para aquela figurou e vislumbrou ali alguma vida. Delirava. Devia ser a fome. Quis continuar andando, mas havia uma atração pelo manequim: era uma mulher, claro, estava nua e parecia viva.
Estranha também aquela sensação. Um desejo de ir embora paralisado. Ele ficaria ali o dia inteiro, em tensão permanente, corda esticada. (“Corda esticada”? Estranho.)
Fez ainda mais força para sair. Finalmente conseguiu. Já era tarde, ele precisava chegar ao trabalho. Não, já era tarde, ele precisava pedir demissão. Não, ele estava enjoado, algo passageiro. Não, ele precisava tomar um suco. Não.
— Não, você não vai pedir demissão.
— Por que não? E quem é você?
— Uma única explicação: eu sou o Autor e você não passa de um personagem. Não tem vontade própria, não pode pedir demissão.
— Bem que eu desconfiei: “o coração palpitava”, “presságio”, “corda esticada”...
— Como assim?
— Ora, apenas um autor medíocre poderia contar minha história com esses clichês. Aliás, é por isso que pretendo ir embora.
— Como assim?
— Ora, cansei de ser o que sou, um derrotado-padrão. Um personagem solitário, homem urbano, cheio de neuroses, com um ou dois cacoetes, sobrevivendo na selva urbana. Falido, impotente, angustiado. Em pouco tempo eu seria transformado em um assassino em série, cuja história seria narrada com serenidade, como se fosse normal.
— Até que você tem boas idéias...
— Tá vendo? Você é medíocre. Rubem Fonseca genérico. Graciliano diluído. Pior ainda, porque esses pelo menos publicaram livros, são premiados. Você, nem a metade: usa-me para escrever posts em um blog. Suprema mediocridade.
— Mas eu não sabia que personagens...
— Falam? Pensam? Sentem? Não são os personagens, idiota, é você. Nem isso você percebe? Acha que sou mesmo eu conversando aqui?
— Então, quer dizer que esse diálogo aqui é todo meu. E que eu posso...
E pela primeira vez em sua vida, sentiu que algo valia a pena.
(“Não tem jeito”, pensou o personagem, ao ler a última frase. “Estou fadado ao clichê eterno. Preciso voltar àquela vitrine, onde há esperança”)
Não era o enjôo de sempre, aquele desconforto contínuo, aquele sem-jeito com tudo. Ou era isso misturado. Mas havia um ingrediente novo: tinha resolvido pedir demissão.
(Passara a madrugada em claro. À noite, antes de dormir, um banho morno, um presságio. O barulho da água, o sabonete, a pele e um desejo de descanso definitivo. Lembrou-se do dia, da semana, de sempre e teve uma sensação ruim. Mergulhou a cabeça sob a água e se esqueceu de tudo. Uma camisa limpa, um lençol recém-lavado, a penumbra, o sono.
De repente, acordou sobressaltado. O coração palpitava. Deve ter sido um sonho, um pesadelo, pensou. Levantou-se, foi até a cozinha. Bebeu de um gole um copo d’água, tão sofregamente, que acabou se molhando. Com as luzes ainda apagadas, foi ao banheiro. Lavou o rosto e acendeu a luz à procura da toalha. Olhou-se no espelho e quase não se reconheceu. Olheiras profundas, barba mal feita. Nem parecia ter saído do banho há tão pouco tempo. Voltou à cama, mas não conseguiu dormir.)
Resolvera pedir demissão. E caminhava para o trabalho. O copo de café da manhã — que ele preferia às xíxaras convencionais —, a última fatia de pão e mais nada. Já era uma da tarde e ele estava atrasado, tinha resolvido ir a pé. Sentia-se enjoado, mas achou boa idéia parar por um suco. Assim adiava um pouco o encontro decisivo.
A meio quarteirão, quase diante da loja de sucos, uma vitrine o reteve. Nela, um manequim nu, à espera das roupas da nova coleção que lhe colocaria o funcionário da loja. Ele olhou fixamente para aquela figurou e vislumbrou ali alguma vida. Delirava. Devia ser a fome. Quis continuar andando, mas havia uma atração pelo manequim: era uma mulher, claro, estava nua e parecia viva.
Estranha também aquela sensação. Um desejo de ir embora paralisado. Ele ficaria ali o dia inteiro, em tensão permanente, corda esticada. (“Corda esticada”? Estranho.)
Fez ainda mais força para sair. Finalmente conseguiu. Já era tarde, ele precisava chegar ao trabalho. Não, já era tarde, ele precisava pedir demissão. Não, ele estava enjoado, algo passageiro. Não, ele precisava tomar um suco. Não.
— Não, você não vai pedir demissão.
— Por que não? E quem é você?
— Uma única explicação: eu sou o Autor e você não passa de um personagem. Não tem vontade própria, não pode pedir demissão.
— Bem que eu desconfiei: “o coração palpitava”, “presságio”, “corda esticada”...
— Como assim?
— Ora, apenas um autor medíocre poderia contar minha história com esses clichês. Aliás, é por isso que pretendo ir embora.
— Como assim?
— Ora, cansei de ser o que sou, um derrotado-padrão. Um personagem solitário, homem urbano, cheio de neuroses, com um ou dois cacoetes, sobrevivendo na selva urbana. Falido, impotente, angustiado. Em pouco tempo eu seria transformado em um assassino em série, cuja história seria narrada com serenidade, como se fosse normal.
— Até que você tem boas idéias...
— Tá vendo? Você é medíocre. Rubem Fonseca genérico. Graciliano diluído. Pior ainda, porque esses pelo menos publicaram livros, são premiados. Você, nem a metade: usa-me para escrever posts em um blog. Suprema mediocridade.
— Mas eu não sabia que personagens...
— Falam? Pensam? Sentem? Não são os personagens, idiota, é você. Nem isso você percebe? Acha que sou mesmo eu conversando aqui?
— Então, quer dizer que esse diálogo aqui é todo meu. E que eu posso...
E pela primeira vez em sua vida, sentiu que algo valia a pena.
(“Não tem jeito”, pensou o personagem, ao ler a última frase. “Estou fadado ao clichê eterno. Preciso voltar àquela vitrine, onde há esperança”)
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