agosto 30, 2004

João Freire

João Freire foi um professor de português cheio de idiossincrasias. Entre elas, falar a palavra idiossincrasia, o que levou a turma, irremediavelmente, a incorporá-la ao próprio vocabulário. De início, como ironia — vá lá, éramos adolescentes —, depois, como quem toma sorvete. A comparação tem sentido: costumávamos falar das aulas na loja de sorvete Mil Frutas, nos intervalos da aula. (Costumávamos ou foi apenas uma vez?)

Outra de suas manias marcantes era chamar nossa atenção para clichês e modismos de linguagem. Sua maior irritação vinha de quem comentasse, a respeito de um livro ou de um filme, que o tinha considerado interessante. “Palavrinha vazia”, resmungava, “que pobreza verbal!” Se quiséssemos irritá-lo, bastava dizer que Camões era interessante. Ouviam-se urros pelo corredor.

Assim que o conhecemos, não foram poucas as vozes que o execraram. Adolescente tem disso: amar ou odiar na mesma medida extrema, sem ponderação. E João Freire era rigoroso, exigia até noções de Latim. Precisava ser deposto.

Mas o ímpeto agressivo durou pouco. Rendeu meia dúzia de músicas e acabou transposto ao lugar empoeirado em que ficam as lendas e mitos, sobretudo os escolares, sobretudo os idiossincráticos. Acho até que uma labirintite garantiu a adesão de ânimos ainda exaltados. Lembro-me de uma crise que ele teve em sala, recusando-se a terminar a aula para não atrapalhar o rendimento da turma. Houve quem desconfiasse que era jogo de cena, mas a voz mais alta de uma ou duas meninas — sempre elas — levou à absolvição do mestre. A doença costuma nos unir na hipocrisia.

De minha parte, já gostava dele desde antes desse incidente, mas isso não me retira a culpa da hipocrisia. Um ano antes, mais ou menos, outro episódio me fez destilar tudo o que havia de dissimulado em mim. Chegando ao colégio de manhã bem cedo, como convinha à minha neurose, encontrei João Freire estacionando seu inseparável Chevette.

— Ei, Bruno. Venha dar uma olhada nestes quadros que trago comigo.

Aproximei-me do carro, intimidado pela proximidade com o mestre temível. Quando cheguei, avistei aquelas paisagens pintadas a óleo. Dizer que eram convencionais seria um elogio desmedido. Mau gosto era pouco. Não sei o que a minha reação traduzia, mas acho que ele não a percebeu. Tanto que perguntou:

— E aí, gostou?

Naquele instante, poderia ter dado uma desculpa esfarrapada e corrido para o colégio. Quem sabe uma simulação de dor, se bem que isso poderia piorar a situação. Talvez um abraço calado no professor, para me furtar à expressão verbal. Mas eu nunca fui espirituoso quando precisava ser. Não tive escolha:

— Olha, professor, são todos muito interessantes.

Freud riria, eu sei, mas a situação não era para risos. A voz de João Freire, gravíssima, tornou-se quase inaudível:

— Bem, vamos à aula.

Fiquei imaginando que ele me odiaria para sempre e até que se vingaria de mim quando pudesse. Mas, ao contrário, eu passei a ser o aluno exemplar, quase amigo, a quem ele confiava os originais a serem fotocopiados — tarefa que eu entregava à Gabriela, é claro.

Até hoje ficou refletindo sobre aquele episódio. Cheguei a pensar que ele não tivesse percebido o que eu dissera. Pura ilusão. Ele percebeu, certamente. Mas fez o que deveria ter feito: concedeu-me o silêncio e uma mensagem sobre o que devemos fazer quando nos dizem as piores verdades. Ainda não aprendi a lição.