Auditoria Brasil, mais uma ONG sem futuro
O melhor argumento é sempre o estatístico, sobretudo quando não se tem razão. Um público matematicamente analfabeto tende a temer os números. Com isso, deixa de fazer quatro perguntas simples: qual é a fonte dos dados? Que método foi empregado? Que conclusões — no plural, sempre — se podem tirar dos números? Que conclusões os números não endossam?
Jornalistas têm sido alvo fácil. Felizmente, as principais fontes de estatísticas são órgãos públicos confiáveis (você leu certo) — tornados independentes e sérios já há algum tempo —, como o IBGE e a USP. Persistem, claro, questiúnculas metodológicas, mais reveladoras do jogo acadêmico que da realidade pesquisada ela mesma. De modo geral, há nessas instituições cientistas com vocação pública, que aprenderam a decodificar informação numérica para os profissionais de mídia.
Talvez, por essa razão, todos os jornais apresentem manchetes idênticas acerca de novas pesquisas. Melhor que isso, os institutos divulgam os resultados aos poucos, facilitando a digestãodos desdentados. Raros são os casos de análises diferenciais feitas por um ou outro jornalista menos apressado.
O problema é que os jornais e, pior, o próprio governo têm sido pautados por uma nova fonte de informações estatísticas: as organizações não-governamentais. Boas intenções e pessoas de bem não podem ser descartadas, certo? Errado. Ciência estatística não tem intenção: tem hipótese. E hipótese não demonstrada também é resultado científico. Não é isso que algumas ONGs fazem.
No site do Brasil sem Armas, descubro que “entre 65% e 70% dos crimes com armas de fogo são cometidos por pessoas sem passagem pela polícia.” O que isso quer dizer? Que a maioria dos crimes não é cometida por bandidos? Não ter passagem pela polícia, considerada a ineficácia do atual sistema de registros, deve ser lido como “ser cidadão de bem”? E, sem querer ofender, qual é a origem desse dado? Isso o site não diz. Mas não pára por aí. Logo em seguida, diz-se que “quem usa arma de fogo tem 56% a mais de chances de ser assassinado.” É para rir?
A Transparência Brasil, braço nacional da ONG dedicada à fiscalização dosprocessos de corrupção nos setores público e privado, é tida como séria. E deve ser. Mas é preciso justificar a própria existência. Isso talvez explique a análise de dados colhidos recentemente em Campinas acerca da compra de votos. A chamada do site diz que a compra de votos é o segundo problema mais mencionado (49,4%) pelos eleitores da cidade. Trata-se, de fato, de um problema real? Ou essa é apenas a opinião das pessoas? Qual o valor dessa opinião? Cerca de 17% dos entrevistados desconfiam das fraudes nas urnas eletrônicas. Essa também é uma opinião. E daí?
Dos 19% que “venderiam” seu voto, 11% só o fariam por mais de R$200. Sobram 8%. Pergunta-se: qual a renda desse grupo que, repita-se, “venderia” seu voto? Em seguida, a pesquisa pergunta a esses potenciais vendedores de votos se eles votariam nos candidatos que teriam feito a compra de seus votos. Resposta: 27% votariam, 55% não o fariam e 18% não sabem. Afinal, a compra de votos é, de fato, um problema em Capinas?
A pesquisa dessa ONG não é desonesta — é bom esclarecer. Ainda assim, o site procura dar um tom dramático aos dados, como se ali estivesse uma revelação bombástica sobre o problema que se tenta combater, mais próximo de nossa realidade do que pensamos. Não é bem assim. Mas dizer isso fica chato; torna a pesquisa meio sem sal.
Certa vez, um jornalista amigo me falou sobre o fascínio que ele tinha por essa espécie de jornalismo antropológico, em que se tenta dar sentido ao presente, ao mesmo tempo em que ele acontece. Fascínio perigosíssimo. Sem uma distância mínima, a visão é míope: vê-se muito, enxerga-se pouco. Por isso, óculos se fazem necessários. Neste caso, teorias prontas, teses prévias, preconceitos. No entanto, a realidade tem arestas de mais, e as sutilezas costumam estragar as melhores matérias. Afinal, esse compromisso com a exatidão não faz mais sentido, não há mais solidez, tudo se desmancha no ar...
Nessa perspectiva, as estatísticas fornecidas pelas ONGs são perfeitas. Caem como luvas nas teorias prontas, reiterando aquela verdade repetida à exaustão. Que tal: uma perfeita harmonia entre a objetividade das letras impressas (ou da voz sóbria) e os números de fonte independente. E tome de politicamente correto. A verdade... bem, a verdade é um detalhe: somos pós-modernos, hein!
(Por isso tudo, tive uma idéia ruim: fundar a meta-ONG Auditoria Brasil, responsável pela fiscalização dos números oferecidos pelas outras instituições. Procuraríamos todas as fontes, analisaríamos todos os métodos, identificaríamos todas as fraudes. Mas não teríamos futuro. Sem financiamento de parte alguma e com pretensão de sobra, não viraríamos sequer notícia. Deixa pra lá.)
Jornalistas têm sido alvo fácil. Felizmente, as principais fontes de estatísticas são órgãos públicos confiáveis (você leu certo) — tornados independentes e sérios já há algum tempo —, como o IBGE e a USP. Persistem, claro, questiúnculas metodológicas, mais reveladoras do jogo acadêmico que da realidade pesquisada ela mesma. De modo geral, há nessas instituições cientistas com vocação pública, que aprenderam a decodificar informação numérica para os profissionais de mídia.
Talvez, por essa razão, todos os jornais apresentem manchetes idênticas acerca de novas pesquisas. Melhor que isso, os institutos divulgam os resultados aos poucos, facilitando a digestãodos desdentados. Raros são os casos de análises diferenciais feitas por um ou outro jornalista menos apressado.
O problema é que os jornais e, pior, o próprio governo têm sido pautados por uma nova fonte de informações estatísticas: as organizações não-governamentais. Boas intenções e pessoas de bem não podem ser descartadas, certo? Errado. Ciência estatística não tem intenção: tem hipótese. E hipótese não demonstrada também é resultado científico. Não é isso que algumas ONGs fazem.
No site do Brasil sem Armas, descubro que “entre 65% e 70% dos crimes com armas de fogo são cometidos por pessoas sem passagem pela polícia.” O que isso quer dizer? Que a maioria dos crimes não é cometida por bandidos? Não ter passagem pela polícia, considerada a ineficácia do atual sistema de registros, deve ser lido como “ser cidadão de bem”? E, sem querer ofender, qual é a origem desse dado? Isso o site não diz. Mas não pára por aí. Logo em seguida, diz-se que “quem usa arma de fogo tem 56% a mais de chances de ser assassinado.” É para rir?
A Transparência Brasil, braço nacional da ONG dedicada à fiscalização dosprocessos de corrupção nos setores público e privado, é tida como séria. E deve ser. Mas é preciso justificar a própria existência. Isso talvez explique a análise de dados colhidos recentemente em Campinas acerca da compra de votos. A chamada do site diz que a compra de votos é o segundo problema mais mencionado (49,4%) pelos eleitores da cidade. Trata-se, de fato, de um problema real? Ou essa é apenas a opinião das pessoas? Qual o valor dessa opinião? Cerca de 17% dos entrevistados desconfiam das fraudes nas urnas eletrônicas. Essa também é uma opinião. E daí?
Dos 19% que “venderiam” seu voto, 11% só o fariam por mais de R$200. Sobram 8%. Pergunta-se: qual a renda desse grupo que, repita-se, “venderia” seu voto? Em seguida, a pesquisa pergunta a esses potenciais vendedores de votos se eles votariam nos candidatos que teriam feito a compra de seus votos. Resposta: 27% votariam, 55% não o fariam e 18% não sabem. Afinal, a compra de votos é, de fato, um problema em Capinas?
A pesquisa dessa ONG não é desonesta — é bom esclarecer. Ainda assim, o site procura dar um tom dramático aos dados, como se ali estivesse uma revelação bombástica sobre o problema que se tenta combater, mais próximo de nossa realidade do que pensamos. Não é bem assim. Mas dizer isso fica chato; torna a pesquisa meio sem sal.
Certa vez, um jornalista amigo me falou sobre o fascínio que ele tinha por essa espécie de jornalismo antropológico, em que se tenta dar sentido ao presente, ao mesmo tempo em que ele acontece. Fascínio perigosíssimo. Sem uma distância mínima, a visão é míope: vê-se muito, enxerga-se pouco. Por isso, óculos se fazem necessários. Neste caso, teorias prontas, teses prévias, preconceitos. No entanto, a realidade tem arestas de mais, e as sutilezas costumam estragar as melhores matérias. Afinal, esse compromisso com a exatidão não faz mais sentido, não há mais solidez, tudo se desmancha no ar...
Nessa perspectiva, as estatísticas fornecidas pelas ONGs são perfeitas. Caem como luvas nas teorias prontas, reiterando aquela verdade repetida à exaustão. Que tal: uma perfeita harmonia entre a objetividade das letras impressas (ou da voz sóbria) e os números de fonte independente. E tome de politicamente correto. A verdade... bem, a verdade é um detalhe: somos pós-modernos, hein!
(Por isso tudo, tive uma idéia ruim: fundar a meta-ONG Auditoria Brasil, responsável pela fiscalização dos números oferecidos pelas outras instituições. Procuraríamos todas as fontes, analisaríamos todos os métodos, identificaríamos todas as fraudes. Mas não teríamos futuro. Sem financiamento de parte alguma e com pretensão de sobra, não viraríamos sequer notícia. Deixa pra lá.)
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