março 26, 2005

Traz um chopp e some!

O Naun tem razão: uma das piores pragas em voga é a síndrome dos garçons universitários. Contratados por bares e restaurantes da moda, eles transmitem uma mensagem curiosa sobre estes tempos, embora eu não saiba qual é. Pensei em dizer que eles estão ali para dar status ao lugar, mas isso seria piada: universitário brasileiro dando status a alguma coisa.

A qualidade do trabalho de um garçom é quase inversamente proporcional ao seu nível de escolaridade, e não há preconceito nisso. Vou ao bar e quero uma figura invisível, que me sirva chopp, de preferência sem que eu peça. Que idéia idiota achar que o cliente quer um amigo que o sirva: “Oi, meu nome é Fabrício (acho que todos se chamam Fabrício) e eu vou estar atendendo vocês”, diz, sentando-se à mesa. “Oi, Fabrício, levanta já!”

Pensando bem, até onde a experiência permitiu verificar, esses garçons universitários estão no emprego certo. São lugares em que não se encontram chopp, filé e fritas, mas apenas chopp perfumado com rosas, filé sobre leito de folhas verdes e “nossas incríveis fries com delicioso molho de queijo e pedaços de alguma coisa”. Com tanta enrolação, merecem atendentes enroladores. Nisso devem ser bons: afinal de contas, estão na universidade.

O pior talvez seja a ironia — e a pior ironia é a do idiota, que acha estar sendo irônico, quando está apenas sendo babaca —, o pior é o sorrisinho irônico diante de um prato pedido para dividir: “Olha, nossos pratos são individuais”, diz o Fabrício, com leve sotaque paulista (Fabrícios vêm de São Paulo, eu acho). O Naun sugere a resposta: “Eu sei, Fabrício, mas vou pedir para dividir porque, ao contrário de você, que é milionário e trabalha de garçom aqui, eu quero economizar e me poupar de comer um prato inteiro dessa comidinha fresca de merda.” Podem testar; funciona.

março 25, 2005

Quer comer limpo, vá comer em casa!

Desde pequeno, sempre gostei de competições. Chegava a jogar Banco Imobiliário contra mim mesmo, roubando para o azul, é claro. Em 1982, ainda moleque, acompanhei cada lance das eleições estaduais, atualizando os resultados para a família. Torcia para o Brizola, o que dava mais emoção à coisa toda.

Esse espírito competitivo acabou me atrapalhando algumas vezes. Não estudei piano, porque percebi que não conseguiria sequer começar a me comparar a qualquer um. Também desisti — sofrendo — da Ana Cláudia, a menina mais bonita do colégio.

Mas o tempo passou, e as coisas mudaram. Não que eu tenha deixado a competição de lado. Nada disso. Apenas mudei de foco.

Hoje, o que me empolga mesmo são as colunas de reclamações de leitores de jornal. Ah, nada como uma briguinha de comadres impressa em páginas “oficiais”. Gosto, especialmente, de quando reclamam de restaurantes. “O filé veio quase cru!” “Aquela barata passou perto da mesa e o gerente disse ela tinha vindo da rua.” “Um absurdo combrarem tanto por uma entrada tão pequena.” Pelo teor da coisa, já se vê quem fala.

E como, apesar de tudo, sou brasileiro, torço sempre pela parte mais fraca. Por isso, vibro cada vez que um maître dá um fora bem dado num cliente reclamão. Com tanta coragem e firmeza, o restaurante há-de ser bom.

março 19, 2005

A prisão da Gramática

Durante muito tempo, cultivei o desejo de escrever um post que começasse por um pronome oblíquo átono, mas não conseguia. Pensava que deveria tentar, exigir de mim a força necessária para fazê-lo. Cheguei até a completar um texto, mas não conseguia publicá-lo. Por certo tempo, deixei-o ali nos drafts, imaginando que sua hora chegaria. E chegou: hoje eu o apaguei para sempre.

Próclise em início de período é o cacete. Não escrevo, e pronto. Razões não faltam.

A primeira delas é a companhia. Diga-me aí, você que manja de literatura, o que é melhor: ficar ao lado de Machado e Graciliano ou de Mário de Andrade e os moderninhos? Elegância é só uma parte da coisa, mas é a melhor parte.

A segunda é o background teórico. Você já viu um lingüista? É um tipo triste, muito triste, que se obriga a ser natural e alegre, que vibra com os dentes trincados quando encontra uma concordância desviante. Essa história de amor ao desvio, não sei, não, mas me parece coisa de idiota.

A terceira razão é o fundamento das duas primeiras: gosto de prisões e tradições. Eu nada seria sem os meus limites; minha busca interior tem sido no sentido de encontrá-los, criar orgulho de todos, dar carinho a cada impossibilidade.

Por isso, cada vez que leio o LLL e sua série sobre as prisões, fico pensando que este blog deveria se chamar “Conservador, Conservante, Conservado”, o que, além de tudo, daria uma bela sigla.

março 18, 2005

Farsante

Eis a inspiração de tudo:


março 13, 2005

Contos Sensoriais (II)

Havia um retrato na parede do quarto de Isabel. Era o retrato de uma velha — ela me contou —, uma fotografia esquecida pelo antigo morador da casa que acabara de alugar. Era o retrato de uma velha, uma imagem envelhecida também. No olhar da velha, sua velhice inteira, disse-me Isabel. Não que houvesse ali sabedoria ou experiência, “essas coisas que queremos ver nos velhos, porque queremos ver em nós mesmos”. Não, em seu olhar havia apenas velhice: nenhuma transparência, opacidade pura. Isso tudo me contou Isabel, porque eu já não podia ver.

E me contou também que aquela velha era um pouco ela própria. Como? — perguntei-lhe. Isabel ficou em silêncio. Insisti em tom mais alto, imaginando que ela não tivesse me ouvido. Novo silêncio. Isabel olhava-me fixamente. Isso eu não podia ver, mas sabia. Isabel tinha os olhos marejados. Isso eu não podia ver, mas sentia em minhas mãos, entendendo que me restava também o silêncio.

O retrato da velha na parede nos contemplava vazio. Isabel não chegou a chorar, porque não queria que as lágrimas limpassem seu olhar do silêncio mais fundo. Isabel queria o vazio também, um vazio que a aproximasse da velha na parede; um vazio que a aproximasse de mim.

março 07, 2005

O que Lobão e Ed Motta (não) têm em comum

Bem no comecinho de Manhattan, há aquela cena inesquecível em que os personagens de Diane Keaton e Michael Murphy conversam sobre artistas “overestimated”, sob o protesto frenético do Isaac de Woody Allen. Quando chegam a Bergman, ele quase tem um infarto.

A cena é engraçada e me veio à cabeça a propósito de duas entrevistas ouvidas recentemente. Uma com Ed Motta; outra com Lobão. Quem os ouve falar — e tem a sorte de não ouvi-los cantar — deve ter a impressão de que se trata de gênios da música, talentos cuja qualidade justifica qualquer arrogância. Um fala de suas incursões pelo jazz; outro, de seu “diálogo” com a MPB. Eles devem estar de sacanagem. É um descompasso tão grande entre auto-imagem e obra, que a piada se torna peça de mau gosto. Levar-se a sério tem dessas coisas.

março 05, 2005

Sobre a minha miopia neurótica descoberta há pouco, por sugestão de um amigo mais esperto

Hoje eu ia contar a história do Gilmar, um cara que só se preocupa com miudezas. Em casa, ele traça algoritmos mentais para tudo. Acorda e, antes de se levantar, imagina a ordem das tarefas que tem a fazer: humm, colocar o pão na torradeira, beber um copo d'água, levar essas meias do quarto para a área, escovar os dentes, checar o email. Coloca tudo na seqüência mais econômica e vai fazendo: pega a meia com a mão esquerda, passa no escritório, liga o computador, passa pela cozinha, coloca o pão na torradeira com a mão direita, deixa as meias na área, liga o filtro, vai ao banheiro escovar os dentes, conecta a internet, pega as torradas e o copo d'água... Tudo isso enquanto planeja próxima seqüência do dia. Gilmar é avesso às grandezas e só enxerga coisas mínimas. O processo, a estratégia, o longo prazo ficam lá, bem fora do alcance da vista.

Gilmar só se preocupa com miudezas e eu ia contar a sua história hoje, mas desisti. Tolstoi aconselhou falar da aldeia, é verdade, mas do umbigo já é demais. Além disso, preciso ligar o gás, pegar a toalha, colocar a comida no microondas, levar o telefone para o quarto, fechar a cortina...

março 04, 2005

Recursos humanos, demasiado humanos

Se Nelson Rodrigues estivesse na ativa, trocaria a figura do contínuo por sua correspondente contemporânea — a gerente de RH. Para quem nunca identificou uma dessas infelizes, uma dica do farsante ausente: é aquela que acha o Jô Soares “uma pessoa muito inteligente” e que deixaria numa ilha deserta “todas as maldades do mundo.”

Sem dúvida, esse perfil produz um desprezo muito grande por quem se acha mais bacana e esperto. O problema é que, mais cedo ou mais tarde, uma gerente de RH entra na sua vida. E aí, na hora de escolher entre você e um outro candidato, ela diz à outra gerente: “Achei esse rapaz muito sério; o outro tem um astral pra cima, sabe.”

Pior ainda é saber que se trata de problema insolúvel, pois que situado num belo círculo vicioso. Quem escolhe as gerentes de RH são as próprias gerentes de RH.

março 01, 2005

Triste Fim de Oswaldinho Nota Verde

Ainda na escola, Oswaldo aprendou a amar o Capitalismo, que fazia questão de escrever assim mesmo, com maiúscula. Sua namoradinha de ginásio, a Ritinha, ficou apaixonada por um professor hippie de geografia — Felipe, Lipão para os próximos —, para quem a propriedade privada era um assalto (ou roubo, não se lembrava bem). Oswaldo tomou o professor como inimigo e resolveu atacá-lo com sua melhor arma à época: “Professor, fala rápido: Marx, Eva e Adão.” Não deu muito certo, e Oswaldo resolveu estudar.

Na sétima série, já conhecia Adam Smith em detalhe, preferências gastrômicas e doenças familiares incluídas. Queria mostrar àquele barbudo com quantos argumentos se ganha uma garota. No entanto, quanto mais lia, mais se dava conta de que sua vitória sobre o professor não seria na porrada, nem no bate-boca; resolveu ficar rico e ganhar a namorada de volta. Para isso, nada melhor que ser doutor. Oswaldo estudava muito, mas só se interessava por capitalistas que se assumissem de boca cheia. Resultado: tirou zero em história e não passou no vestibular. Como era contra a universidade pública, ficou até satisfeito, mas não podia pagar uma particular. Embora fosse capitalista, Oswaldo mal tinha o da passagem. Resolveu se virar.

Primeiro tentou um empreendimento próprio. Viu que no bairro só havia uma banca de jornal e montou a sua. No início até que vendia bem; tinha um bom papo e se tornou ídolo dos aposentados das redondezas. Seus argumentos — acredita-se — foram a matéria-prima de dezenas de cartas de leitores enviadas ao jornal da cidade, daquelas em que se protesta com frases de efeito. Sua banca sempre cheia acabou atraindo outros jornaleiros e, em pouco menos de dois anos, Oswaldo faliu. Não ficou chateado; antes o contrário: viu naquilo a beleza da livre concorrência e do espírito empreendedor.

Depois da tentativa frustrada, Oswaldo ainda sonhou com uma towner, mas ficou no sonho mesmo. Acabou arrumando um emprego numa firma de serviços gerais. Não tinha carteira assinada, mas não via mal nisso. Afinal, ele vendeu sua força de trabalho como quis e quem seria o Estado para reclamar disso? Mas o Estado reclamou, e uns fiscais obrigaram a firma a empregá-lo oficialmente. Férias, décimo-terceiro, aquela coisa toda. Oswaldo entrou em depressão: estava feliz com a CLT, logo ele, que tanto gritava contra aquele absurdo. Antes que fizesse uma besteira, foi demitido.

Oswaldo não desanimou. Achou que a política seria o seu lugar e não tardou a se filiar a um partido liberal. Logo descobriu que o nome não dizia muita coisa: em seu primeiro discurso, ouviu um bocejo a cada citação de um economista de renome. Quando chegou a Schumpeter, um colega o interrompeu numa salva de palmas. Só saiu candidato porque se comprometeu a não falar difícil. “Povo gosta de emprego, não de trabalho,” disseram-lhe. Irritado com a censura freqüente, Oswaldo exigiu respeito à sua coerência, no que foi prontamente atendido: passaria a se chamar Oswaldinho Nota Verde, em alusão aos dólares que adorava elogiar. A campanha não deu certo. Ninguém parecia disposto a doar dinheiro para alguém com aquelas idéias. “Mas o que eu defendo é exatamente o seu lucro”, insistia, antes de ouvir a resposta de sempre: “Meu filho, se eu quisesse livre concorrência, não dava dinheiro pra campanha política.” Os votos dos aposentados do bairro não salvaram Oswaldo da derrota humilhante. A política o expulsou de vez.

No dia da eleição, Oswaldo ficou cabisbaixo; não pela derrota, que ele até compreendeu. Triste mesmo foi ver a Ritinha toda prosa ao lado do Lipão, num conversível mais que bacana. Arrasado, Oswaldo ainda teve tempo de pegar o ônibus, mas ninguém sabe para onde.